
A Pintura de Marlene de Andrade
Ela tem sua vasta bagagem profissional e tem a vocação inata da cor. Para o artista plástico pintor, essa vocação equivale ao dom da afinação natural do músico. Para ser a pintora que é hoje, Marlene de Andrade conjugou sua experiência com a xilogravura, a cerâmica, o estudo da pintura, o exercício da designer têxtil na criação de moda e decoração, e a observação, com acuidade, das obras de Van Gogh, Picasso, Miró, Matisse, Magritte e Cocteau. Ela pinta há quase meio século, e quando pinta, suas tarimbas em campos tão diversos lhe são úteis na composição, no uso do espaço, e principalmente no uso da cor, onde ela se sente segura e à vontade.
Suas composições, por exemplo, usam elementos realistas, arabescos, planos retilíneos, pormenores ornamentais, flores, árvores, vetores, elementos arquitetônicos e relógios que marcam o tempo, mas o clima que resulta desses usos é surreal, é um clima pictórico pessoal, onde todos esses elementos entrecruzados e alternados com peixes, garrafas, o corpo e o rosto humanos e formas abstratas, convivem numa dinâmica que lembra a realidade objetiva, mas que a transcende para construir um mundo onírico, poético, que emerge graças à cor, ainda mais do que graças ao planejamento das composições.
Aliás, é forçoso dizer que as próprias formas nascem do uso da cor. Essas formas são algumas vezes desenhadas, mas geralmente surgem do fluxo da cor. Marlene não só usa a cor para desenhar as linhas e as formas, como as próprias formas nascem da cor, à medida que ela se expande com a tinta acrílica sobre a superfície da tela. Mesmo quando ela se inspira em alguns ícones de Leonardo da Vinci, eles flutuam no espaço em virtude da autonomia da cor.
E, em que consiste essa cor de Marlene, que é capaz de construir um universo lúdico e poético? É uma cor sempre sutil, leve e delicada, aplicada com escrúpulos, cuidado, em semitons etéreos. É uma cor muito dela, onde os tons de laranja coabitam lado a lado com os verdes líquidos, os azuis diáfanos, as variantes dos marrons-terra e os tons de lavanda. Embora as tintas sejam acrílicas aplicadas sobre telas, elas escorrem tão leves que chegam a lembrar as transparências dos guaches e das aquarelas sobre papéis artesanais.
As formas reais ou abstratas resultam mais dos traços e dos volumes oriundos da paleta que do desenho, de maneira geral, e evoluem no espaço como composições de um mundo irreal, imaginário, que deriva do cotidiano, mas que paira sobre ele, graças à fantasia que só a cor é capaz de dar, quando tratada com intuição criativa e pincéis disciplinados.
José M Neistein – São Paulo, Brasil – Março de 2019